Laboratório Think Olga
Lab Think Olga | Cuidado e Política

Especial Think Olga

Autonomia:
mulheres, cuidado e renda

As mulheres estão tendo a pior participação no mercado de trabalho formal em 30 anos, em decorrência da crise causada pela pandemia de COVID-19 no Brasil. Este dado significa que elas têm menos acesso a recursos financeiros e às condições de vida custeadas pelo dinheiro, que vão desde ter um teto sob onde dormir e se alimentar de maneira nutritiva a ter tempo de ócio e de cuidado de si. As consequências disso são aumento de violência doméstica, problemas de saúde, ausência de perspectivas de futuro e de mobilidade social e menor potencial de inovação e criação.

Desemprego feminino e masculino por setores na pandemia

As categorias em que há mais mulheres trabalhando foram as que mais desempregaram durante a pandemia:

Serviços domésticos

Educação, saúde e serviços sociais

Alimentação e serviços

58%

das mulheres desempregadas
durante a pandemia são negras.

Gênero e Número e SOF
Pnad Contínua
O desemprego e a consequente falta de acesso a renda foi uma das principais consequências da pandemia na vida dos brasileiros.

Com a crise, a desigualdade social também agrava as diferenças de gênero, raça e classe social, o que se traduz em fome, miséria, evasão escolar, falta de acesso à moradia, trabalho infantil, exploração sexual e trabalhos análogos à escravidão. Situações de extrema vulnerabilidade se tornaram mais graves desde o ápice da pandemia até os primeiros meses de recuperação econômica com o auxílio emergencial e as vacinas em 2021.

Mas indicadores mostram que apesar de um reaquecimento do mercado durante o ano de 2021 e certa queda do desemprego, figurar no mercado formal ainda é um desafio entre as mulheres.

Mulheres e homens na informalidade

Brasil

América latina

Em 2021,
230,2 mil
vagas formais criadas foram ocupadas por homens enquanto as mulheres perderam 87,6 mil postos de trabalho.

Ainda que venha existindo uma retomada econômica, o crescimento da ocupação acontece majoritariamente em setores informais: são postos de trabalho que não oferecem segurança financeira, direitos e condições dignas de trabalho.
Ipea
60%
da força de trabalho da América Latina é informal e a cada crise, o setor formal encolhe 4% FGV, 2021

Cerca de 70%
dos empregados gerados de meados de 2020 até o primeiro trimestre de 2021, são ocupações em condiçõs de informalidade OIT

O nó entre informalidade e trabalho do cuidado

A informalidade dos vínculos de trabalho leva a uma situação de precarização, em que trabalhadores e trabalhadoras não têm garantias de direitos e condições dignas de trabalho. Dessa forma, vêem seu tempo ser progressivamente desvalorizado diante de remuneração injusta e precisam exercer mais de uma atividade remunerada para compor renda, ficando, assim, sobrecarregados. Esta situação atinge mais fortemente as mulheres, especialmente aquelas em arranjos familiares monoparentais.
Diante deste contexto, a pobreza de tempo destas pessoas é uma realidade cada vez mais evidente. Isso porque se precisam assumir de dois a três trabalhos, para os quais fazem deslocamentos pela cidade, não há tempo para exercer o trabalho do cuidado em suas próprias casas. Este problema afeta muito mais as mulheres, já que é socialmente esperada delas a função do cuidado.

O recado que fica é que o mercado de trabalho não é lugar de mulher, uma vez que as lógicas deste universo foram construídas tendo por base a vida de um homem privilegiado – que conta com uma horda de mulheres para realizar aquelas tarefas que ele não faz, como cuidar da casa e das pessoas da família que precisam de auxílio.

Informalidade e empreendedorismo por necessidade: as “soluções” emergenciais diante do desemprego

O Brasil terminou o ano de 2021
com 12 milhões de pessoas desempregadas.
Mas se somados os desalentados, aqueles que não têm trabalho e desistiram de procurar, são 16,8 milhões de brasileiros sem ocupação. O perfil médio do desempregado brasileiro é de uma mulher, jovem e negra, de acordo com dados do Ipea.
Estas são as pessoas mais expostas a ocupações sem carteira assinada, o que acontece em um amplo cenário de precarização do trabalho, caracterizado por acordos informais, temporários, mal remunerados, inseguros e não garantidores de direitos trabalhistas. Nessa dinâmica, o trabalho informal se torna um amortecedor ao desemprego formal dentro do arranjo de mercado de trabalho da América Latina, sem que existam políticas efetivas de proteção social a essas trabalhadoras.

Ainda se soma a tudo isto as características da crise trazida pela pandemia: falta de acesso a estruturas públicas e privadas de cuidado, como creches, e distanciamento social, que dificultou o contato com redes de apoio informais, como avós e vizinhas. Este se revelou um grave problema especialmente para aquelas mulheres mães empregadas em trabalhos considerados de serviços essenciais (seja com contratos formais ou informais) e que não foram paralisados, a exemplo de empregadas domésticas, cuidadoras e trabalhadoras da limpeza.

Caminha junto a este movimento o aumento da abertura de MEIs (micro empreendimentos individuais). Mas ser uma profissional autônoma nem sempre quer dizer que se tem autonomia financeira. De acordo com a Pnad Contínua, houve um crescimento recorde de MEIs entre o segundo semestre de 2020 e o primeiro de 2021, que revelam uma resposta pela via do empreendedorismo por necessidade. São empresas que nascem como uma saída de emergência para que se mantenha a subsistência. Ou seja, o desemprego empurra a população sem trabalho formal, majoritariamente mulheres, para relações de informalidade e para a abertura de micro empresas como “solução” para obtenção de renda.

Negócios das mulheres negras

A pandemia diminuiu a participação das mulheres negras à frente dos negócios.

Período de isolamento

Comparativo 2019 e 2021

19,4% das empreendedoras negras não dispõem de reservas financeiras durante o isolamento social, e apenas 44% conseguem manter as portas abertas por apenas um mês com o que têm em caixa NEXO
Enquanto no último trimestre de 2019, elas eram 50,3% das donas de negócio, no último trimestre do ano passado, elas passaram a responder por 48,5%. Já as mulheres brancas passaram de 48,4% das donas de negócio para 49,9%. Agência Brasil/Sebrae

Segregação ocupacional

Enquanto o foco dos negócios liderados por mulheres está principalmente nos setores de educação, saúde, serviços sociais, indústria geral, alojamento e alimentação, o masculino se concentra no agropecuário, na construção e no transporte.

Quase metade dos negócios comandados por mulheres fica no Sudeste do país. A região Centro-Oeste é onde há menor concentração de empreendedoras.
Nubank, 2021 e Instituto Rede Mulher Empreendedora (IRME), 2020
Negócios comandados por mulheres
Diante deste contexto, a necessidade de uma fonte de renda é o principal motivo que leva as mulheres a abrirem um MEI, de acordo com o Sebrae. E a proporção de negócios abertos por esta motivação é maior entre elas do que entre os homens (44% de necessidade das mulheres contra 32% no caso dos homens). A segunda razão é o desejo de ser independente. Outras pesquisas também apontam a flexibilidade de horário como uma importante motivação para o empreendedorismo feminino, como demanda da economia do cuidado, que recai quase exclusivamente sobre elas.

Tal informação indica que elas recorrem aos pequenos negócios como forma de se manterem economicamente ativas diante das barreiras que restringem sua participação no mercado de trabalho formal. Confirma isto o fato de que a maioria esmagadora das mulheres passa a empreender depois da maternidade. Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) apontou que 24 meses depois de tirarem licença maternidade, quase metade das mulheres está fora do mercado de trabalho, um padrão que se perpetua inclusive 47 meses após a licença.

Maternidade e sobrecarga pelo trabalho doméstico e de cuidado

Com a crise sanitária, este problema se intensificou:

7 em cada 10 mulheres

sentiram aumento da carga de cuidados com lar, o que teve consequências para seus negócios.

Pesquisa “As Empreendedoras e o Coronavírus”, realizada em abril de 2020 pelo IRME em parceria com o Instituto Locomotiva com mais de mil mulheres que possuem negócio próprio ou se consideram empreendedoras.

O desemprego após a maternidade é uma realidade generalizada, no entanto, os efeitos são bastante heterogêneos e estão relacionados com o nível educacional: trabalhadoras com maior escolaridade apresentam queda de emprego de 35% 12 meses após o início da licença, enquanto a queda é de 51% para as mulheres com nível educacional mais baixo.
Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados)
Na vida cotidiana, a soma destas questões se traduz em mais mulheres expostas a situações de vulnerabilidade quando não estão apoiadas em trabalhos com justa remuneração, pois a participação das mulheres no mercado de trabalho dá possibilidades de sobrevivência sem depender das relações conjugais. A dificuldade de garantir autonomia financeira é o elemento mais destacado pelas mulheres como componente de vulnerabilidade à violência durante a pandemia. Entre aquelas que sofreram violência, 25% afirmam que a perda de emprego e renda e a impossibilidade de trabalhar para garantir o próprio sustento são os principais fatores para a exposição a situações de violência.

Violência contra as mulheres

Durante a pandemia,

1 em cada 4 mulheres

brasileiras (24%) acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência ou agressão. Isso significa que cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual.

31,9%

22,3 milhões de mulheres

ouviram comentários desrespeitosos quando estavam andando na rua

47,12%

foram vítimas de assédio sexual ambiente de trabalho Fonte: Pesquisa “O ciclo do assédio sexual no ambiente de trabalho”, uma parceria Think Eva e LinkedIn.

26%

das pessoas entrevistadas afirmaram que passaram a trabalhar remotamente em função da pandemia, índice concentrado naquelas com nível superior (41%), das classes A e B (45% e 37%) Pesquisa “Visível e Invisível – A vitimização de mulheres no Brasil”, realizada pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Neste sentido, tanto a informalidade quanto as pequenas empresas são soluções paliativas, mas que se mostram necessárias, na busca pelo sustento. Fica claro que falta uma atualização na regulamentação trabalhista e/ou suporte do poder público para o empreendedorismo para que situações assim não sejam mais onerosas apenas para o lado vulnerável desta história.

Reconhecer a relação com economia do cuidado é importante para falar de autonomia

Em um olhar rápido pode parecer contraditório: ao mesmo tempo que estamos demonstrando as más condições de trabalho de muitas mulheres, especialmente em situações de informalidade e pequenos empreendimentos, estamos dizendo que é o trabalho que oferece autonomia, emancipação e possibilidades de vida digna. O que queremos então? Queremos um mercado de trabalho que leve em consideração as necessidades humanas e de cuidado, trabalho que ainda sobra na conta das mulheres.

Quase paradoxalmente, as mulheres só poderão viver de maneira mais autônoma quando “dependerem” de outras pessoas, companheiros e companheiras, estruturas públicas e privadas, para compartilharem o trabalho de cuidado. Ser autônoma, por fim, tem a ver com pedir e encontrar ajuda.

Isto se articula à divisão sexual do trabalho, arranjo da divisão social do trabalho em que as atividades produtivas, ditas masculinas, são valorizadas com diferente peso simbólico e diferente efeito material em relação às atividades reprodutivas, ditas femininas. Ao mesmo tempo, se conecta a tudo isto uma história social de característica patriarcal, machista e racista em que, por longos anos, foi mais possível aos homens (não deixando de notar especificidades de raça e classe) acessar a escolaridade, o mercado de trabalho formal e, por consequência, os espaços de poder (sejam políticos institucionalizados ou simbólicos), a circulação nas cidades e as liberdades sexuais.

É simples compreender que se as mulheres dedicam proporcionalmente mais tempo ao trabalho do cuidado, elas têm um provável prejuízo do seu trabalho produtivo se comparadas aos homens – o que se dá tanto pela impossibilidade de empregar-se no mercado formal quanto pela adesão a atividades que possibilitem articular ambos os trabalhos, produtivo e reprodutivo. Na vida dos indivíduos, isso pode se traduzir em ter menos rendimentos e depender de um companheiro para manter a casa, por exemplo. Importante lembrar que o rendimento é uma das principais variáveis para mensurar a autonomia feminina, já que a renda, principalmente aquela decorrente do trabalho, é fonte de bem-estar das mulheres e um indicador de desigualdade social.

Conheça o Lab Think Olga Economia do cuidado

Autonomia feminina é chave para o futuro das mulheres

Estamos em 2022. Vivemos em uma sociedade cuja lógica capitalista desenha um cenário em que viver bem passa por ter ocupação e recursos financeiros. No capitalismo vendemos nossa força de trabalho e em troca recebemos uma remuneração que custeia nossas vidas. Sabemos que este sistema tem sido uma das principais razões da precarização do trabalho, da falta de diversidade no mercado e de lógicas de produtividade que priorizam um trabalhador: o homem, branco, de classe média alta. Portanto, estamos aqui investigando a autonomia como estratégia de resistência e de existência, mas também, mapeando fatores de renda e trabalho para pensar um cenário mais digno para todas. Um cenário em que estar em um emprego formal ou abrir um negócio seja questão de escolha, mas que ambas levem a condições de autonomia. Um cenário com salário justo, garantia de crédito para microempreendedoras e para trabalhadoras informais, de apoio financeiro para pessoas que cuidam de outras pessoas e que precisam de aposentadoria digna, bem como recursos para manter o sustento de dependentes financeiros, além de não retrocedermos ainda nos direitos trabalhistas conquistados.

Pensar em autonomia feminina se mostra como uma chave importante para um futuro do trabalho que seja justo com as mulheres. Para isso, é preciso ter condições de autonomia, o que vai além da sua expressão financeira. Ou seja, ter poder e possibilidades de uma vida digna passa por ter dinheiro, mas de forma alguma se resume a isto.

Aqui gostaríamos de propor uma conversa, abrir uma discussão, sobre a necessidade de autonomia feminina em diversas dimensões. Dimensões que se conversam e precisam interagir para que vidas mais dignas sejam uma realidade.

Autonomia é um caminho que se constrói a cada passo.

Entendendo autonomia

Universo próximo

Universo distante

A autonomia que buscamos

Para o educador Paulo Freire, o objetivo maior de ensinar e aprender é desenvolver a autonomia de tomar decisões e entender as consequências dos próprios atos. Do seu ponto de vista, este caminho é entendido como um processo de respeito ao outro, de formação moral e ética, de uma reflexão e curiosidade crítica, de assumir-se.

Acreditamos que esta compreensão sobre a autonomia pode se estender para além dos processos de aprendizagem didática, que podemos falar da importância da autonomia em três âmbitos da vida: financeira, emocional e de conhecimento.

Importante pontuar que se observamos as diferenças que se costuma estabelecer socialmente entre homens e mulheres, não é difícil perceber que a autonomia, especialmente em seu âmbito financeiro, é vista como um direito muito mais do universo masculino do que feminino. Se adicionamos a questão racial, a cena se complexifica ainda mais, uma vez que historicamente no Brasil as mulheres negras sempre foram parte do universo do trabalho (como pessoas escravizadas, como ganhadeiras, como mulheres de baixa renda e chefes de famílias monoparentais), mas isso não necessariamente quer dizer que elas tenham encontrado tal autonomia.

A autonomia enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade.

Paulo Freire,
Pedagogia da
Autonomia, 1996.
Quando Freire reflete sobre a presença humana no mundo, pensa como uma presença que pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz, mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe.
Para ele, é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade.
Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões que vão sendo tomadas.

Entenda as diferentes autonomias

A autonomia das mulheres é a garantia do nosso futuro

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