Laboratório Think Olga
Lab Think Olga | Cuidado e Política

Autonomia emocional

Ter autonomia emocional é a possibilidade de encontrar liberdade sobre o próprio corpo, mente, coração e subjetividade, respeitando sempre os limites individuais. No mundo atual, reflexões sobre gênero e raça são motivadores de mudança e chave para transformações nesta seara. Como criamos meninas para que elas desejem mais do que o casamento como plano de sucesso? Para que não sintam que são incompletas sem um homem ao lado validando sua existência? Como entender o funcionamento para desfazer a vulnerabilidade que o racismo histórico é capaz de infligir? Como construir segurança emocional? Como incentivar que mulheres busquem suas próprias vias de autonomia? Estas foram algumas das questões que nos motivaram.
Ter autonomia emocional é se conhecer para poder fazer escolhas melhores. É não ser refém emocional de relações, sejam amorosas/sexuais, familiares, de amizade ou de trabalho. É poder sonhar e ter esperanças, ter segurança em si e no próprio potencial.
Não ter autonomia emocional implica em vulnerabilidade a diversos ciclos de violência. O resultado disso é a fragmentação da nossa própria identidade, diante de demandas externas, o que causa adoecimento emocional e psicológico de diversas formas e em diversos níveis. É a limitação dos potenciais e da criatividade, estigma e reprodução de ciclos familiares dolorosos.
Conversamos sobre autonomia emocional com Elisama Santos, psicanalista e estudiosa da comunicação não violenta, e compartilhamos a seguir as principais questões levantadas sobre o assunto.
Elisama Santos é escritora e psicanalista. Autora dos best-sellers Educação não violenta (2019) , Por que gritamos? (2020) e Conversas Corajosas(2021), pela Paz & Terra. Escreve e palestra sobre a construção de relacionamentos mais saudáveis e harmoniosos e educação parental. Acredita na empatia e na compaixão como poderosas ferramentas de transformação social.

Autonomia emocional não é independência total

“Falar sobre autonomia emocional para mim é falar sobre a gente estar vivo, é uma conquista chegar em uma fase assim. Mas é muito importante, sobretudo quando o tema está relacionado a mulheres, desmistificar a ideia de que autonomia emocional é uma independência total. Não é disso que a gente está falando.

Existe uma ilusão de que vamos chegar num momento que não dependemos de ninguém. Mas a conquista da independência tem suas limitações, é importante ter consciência de que sempre precisamos do outro. Então é bacana buscar construir relações em que é seguro confiar e esperar que o outro nos dê algo em troca nessa construção.

A ideia é entender a autonomia emocional não como uma busca por viver isoladamente fazendo tudo sozinha, mas pela construção de relações em que eu me acolho, eu me entendo e eu sou entendida e acolhida pelo outro. Não dá para a gente criar essa imagem dissociada da relação com o outro porque nós somos seres de comunidade. E me preocupa o discurso que fala da independência feminina colocando em nós um peso de carregar o mundo sozinha. Pra mim é só o patriarcado mudando de roupa, continua a mesma cobrança, o mesmo peso e a mesma pressão.”

O que autonomia emocional tem a ver com autocuidado

“É muito complicada a forma que se tem falado do autocuidado. Ele é algo que vai além da aparência física. Autocuidado é aprender a dizer não: não quero, não posso, não tenho como cumprir esse prazo. É entender que o meu valor não está no que eu faço. Saber que meu valor é maior que isso é o que me permite dizer não sem medo, fazer faxina nas minhas escolhas. O autocuidado não pode ser mais um item na lista de tarefas para fazer”.

Quando falta apoio e quando é possível pedir ajuda?

“Autocuidado também é pedir ajuda, largar o peso do meu corpo nos braços de outra pessoa. Um banho no escuro é legal? É. Mas ele não muda a vida de ninguém. Se você não tem alguém para olhar o bebê para você poder sair e ver o céu na rua, não adianta o banho no escuro. Ouvir uma música que acalma, tomar um bom banho, são pequenas ações que podem sim ajudar no dia a dia, elas contribuem, mas não são o suficiente, são um paliativo. Isso não vai funcionar se a opressão que está me doendo o tempo inteiro não for cuidada. Então é pensar: se estou tão cansada e precisando desse paliativo, é porque mesmo? Porque me falta apoio em vários sentidos. Como resolver isso?

“Eu não dou conta” pode ser substituído por “eu não tenho apoio suficiente”. Isso tira de uma visão neoliberal, individualista, de que o problema é o indivíduo, e ajuda a enxergar esse indivíduo inserido em um contexto. Por que essa pessoa não dá conta? Quantos braços estão faltando para que ela dê conta? O que essa mulher precisa para que ela sustente esse peso da vida? Quem disse que ela tem que sustentar esse peso sozinha? Para isso precisamos de ajuda e rede de apoio”.

O trabalho de cuidado e o poder

“Estamos acostumadas a só contar com outras mulheres para pedir ajuda. Quando pergunto sobre rede de apoio, ouço: mãe, sogra, irmã, amiga. É um problema complexo e estrutural, que mantém a nossa sociedade como está: mulheres fazem crianças e acreditam que servem para cuidar; e homens não se preocupam com as mulheres que fazem crianças, e com as crianças, e com o cuidado, porque eles têm um mundo para conquistar, sabe?

Bell hooks falava que os homens são treinados para o poder e as mulheres são treinadas para o cuidado. Para entender que têm que cuidar, é preciso sair da lógica do poder, de estar sobre alguém”.

O trabalho de cuidado remunerado e a manutenção das estruturas

“E aí é muito injusto chegar para a mulher sobrecarregada que contratou alguém para cuidar do filho dela, pra conseguir fazer algumas outras coisas – e eu não estou falando aqui da mulher super rica, que tem uma equipe de 15 pessoas, eu tô falando da trabalhadora normal, que contratou outra trabalhadora – eu não posso colocar nessa pessoa o peso da culpa da opressão social das mulheres negras. E falo como mulher negra. Não posso colocar a culpa nessa mulher e esquecer de todos os homens que se beneficiam disso. Não dá para focar nisso e esquecer que ela só terceiriza o serviço porque não tem mais ninguém para fazer isso com ela. É um ranço escravocrata, é racista, mas é também misógino. E a gente não pode colocar na mulher a culpa por contratar outra mulher. Precisa ampliar a visão dessa história e ir nas estruturas que deixam essa mulher solitária a ponto de precisar contratar outra mulher para fazer esses serviços com ela. Se não, a gente só vai, pra variar, liberar o homem dessa história e colocar a culpa nas mulheres”.

Amor, violência e responsabilidade pelo comportamento do outro

“Nossa educação nos faz misturar dois conceitos que não deveriam andar juntos: amor e violência. É comum crianças ouvirem “Eu te bato porque eu te amo”, “você está me pedindo pra te bater”, etc. A construção da violência na educação de uma criança é a base para a manutenção de uma sociedade como está. Criamos pessoas acostumadas a acharem que são responsáveis pelo comportamento do outro, que se forem muito boazinhas, terão o bonzinho do outro. É ela que tem o poder de ficar boazinha e de, se se comportar muito bem, transformar o outro num ser melhor.

A relação abusiva começa te falando que você não tem direito a ter limites, que as portas têm que estar todas abertas. Então se a gente tem a chantagem emocional na base da educação, a relação abusiva é uma continuidade. Algo como: era papai, depois passa a ser o marido.

A relação abusiva tem no seu cerne a capacidade de fazer você considerar que o que você quer não é importante. É minar a consciência de si o tempo inteiro”
“Quando a gente fala da autonomia emocional, a gente fala da capacidade de dizer o que se quer e se deseja – e de colocar bordas protetoras nisto.”
“É o oposto do que se propõe uma relação abusiva. Quando eu fortaleço uma mulher na capacidade de dizer que não quer, que não pode, ela entende que o “fracasso” dessa relação não é sua responsabilidade. A gente cresce em uma sociedade que diz que a mulher sábia edifica a casa, que diz que só ela, sozinha, é capaz de manter uma relação saudável. Quando ela entende que o que quer importa, que pode dizer não e negar uma situação, tudo muda”.

Dinheiro e saúde mental das mulheres

“Quando a gente fala da questão financeira para mulheres, isso envolve muito mais gasto. Nossa socialização, das meninas, é para o cuidado, então é comum que a gente olhe coisas que os homens, os pais, não olham, como a roupa dos filhos, por exemplo. Isso faz com que a gente gaste mais – mais com os outros e menos conosco.

E quem fica em paz sabendo que não tem dinheiro pra pagar as contas do mês que vem? Como dormir tranquila sem saber se vai poder trocar o tênis do seu filho que você está vendo que tá ficando apertado nele?

Ou então, às vezes você está até com condição financeira, mas saber que uma criança depende de você para tudo é outra história, apavora a gente. Ao falar de mulheres que são responsáveis financeiramente por tudo (mães solo e/ou chefes de família), a gente adiciona uma responsabilidade gigantesca em uma dor que ela já tinha. Para além do medo de morrer e deixar de dar o amparo emocional, psicológico ao filho, ainda é a única que pode sustentá-lo. A sensação é que se o filho a perder, ele perde tudo. Como se vive bem com esse nível de ansiedade? Se você tem uma oscilação financeira gigantesca, isso é muito duro”.

O direito de dizer não em relações de trabalho e amizade

“Se você dá conta de tudo, é uma amiga que está ali o tempo todo, uma funcionária que veste totalmente a camisa, é vista como alguém sem limites. Voltando à autonomia emocional como algo que passa por entender o que eu sinto, eu lembro que tenho direito de dizer não. Eu lembro que minha amiga vai continuar me amando mesmo que eu diga ‘hoje não vou te encontrar’. Não perco minha carteirinha de boa funcionária se eu digo ‘esse prazo está muito apertado, vou precisar de mais x dias para te entregar esse projeto’. É importante lembrar que podemos fazer isso, eu continuo sendo boa e o meu valor não está sendo negociado na mesa por colocar esse limite. Se isso está sendo negociado pelo outro, tem algo de errado nessa relação, e não é no meu limite. Se uma relação, seja qual for, me tira o direito de dizer não, ela me tira o direito de existir. O não protege minha existência, eu tenho direito de ter limites. Então se essa relação me tira esse direito, não é a relação que eu devo estar. E aí eu vou lidar com o luto de sair dessa relação, eu só não posso lidar com o luto dos meus valores”.

O papel das estruturas na relação com a saúde mental

“Não podemos esquecer que é preciso estrutura para que as pessoas tenham suporte para que os pratinhos não se espatifem no chão. É preciso pensar em estruturas sociais que dêem suporte a essa mulher para que os pratinhos sejam equilibrados. É importante lembrar como a gente vota, como o poder público apoia ou não essas pessoas, se tem creche, se tem serviços de saúde de qualidade.

Uma das possibilidades é desabafar, falar, a escuta é muito poderosa. É lindo pensar em movimentos que deem apoios diversos para essas pessoas. Acredito em terapias gratuitas, em apoio emocional. Todo mundo tem problema emocional, todo mundo está sentindo dor, depressão não é doença de rico. Saúde mental não é e não pode ser privilégio de poucos”.

Autonomia emocional e lugar do trabalho: diferenças para mulheres brancas e racializadas

“A mulher branca costuma ser educada para ser boazinha, quietinha, contida, bibelô, bonequinha e enfeite. Ela precisa de uma busca por descobrir limites, descobrir que é forte sim, que não precisa de alguém que fale por ela, que dá conta de dizer e sustentar o não. Nós mulheres negras não fomos educadas para sermos boazinhas, crescemos ouvindo que damos conta, que somos fortes, que não precisamos de ninguém, que não levamos desaforo pra casa. Então o exercício da autonomia emocional está em sair dessa reatividade e pensar nos momentos em que não dou conta, em não manter essa aparência da fortona que eu aprendi desde muito pequena. Enquanto a mulher branca tem que aprender a reagir mais, a gente tem que aprender aquietar e não fazer tanto, confiar que alguém vai me amparar. Dizer que não dou conta não vai me tornar menos forte, guerreira ou assertiva. Quando ouço que a mulher branca tem que lutar para estar no mercado de trabalho sempre penso: minhas ancestrais estavam no mercado de trabalho há muito tempo, chegaram nesse país trabalhando e sendo exploradas, nunca tiveram um descanso.

Há essa diferença sobre como somos vistas por nós mesmas e pelo outro. E também temos semelhanças, porque na sociedade, em como fomos educadas, são os homens que tiram vantagens de absolutamente tudo”

Como encontrar e oferecer autonomia emocional

“Precisamos cuidar das nossas meninas: o que a gente fala, quais correntes usamos para prendê-las. É essencial perguntar o que elas querem fazer, que elas digam o que não gostaram, como acham que devia ser feito. Menina boazinha, fácil de lidar, pode se tornar uma mulher violentada.

Mas acredito que uma das coisas mais bonitas do ser humano é a plasticidade que a gente tem. Somos capazes de aprender até a velhice. Digo isso porque a gente pode aprender a ter autonomia emocional até na velhice. É fácil? Não! Dizer pro outro que não gostamos dessa forma, que não queremos, que não aceitamos, pode ser doloroso. Mas na segunda vez melhora… E assim a gente vai construindo uma musculatura emocional para isso.

É construção no dia a dia, com suor. Exige força, mas é essencial. É difícil, mas é pra gente. Não dá pra achar que se “é difícil, não é pra mim”. Isso é um processo de uma vida, mas é um processo que a gente precisa viver.”

“Como mulheres adultas, vamos enxergar que não tem caminho fácil? E como é mais difícil? Se manter se machucando, ou construir esse outro caminho que faça mais sentido, com toda dificuldade? Qual o difícil que você vai escolher?”

Entenda as diferentes autonomias

A autonomia das mulheres é a garantia do nosso futuro

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