mãe preta, ontem eu lembrei de ti.
lembrei daquele dia que olhei para sua mão e perguntei porque ela tinha tanta cicatriz.
você falou que corpo de mulher preta era marcado nessa vida, disse que era herança do trabalho pesado, do esforço contínuo em dias de chuva e de sol.
hoje fico pensando nesse tanto de marca que era sua e eu trouxe comigo sem perceber.
ao meu lado sempre esteve você:
na hora em que chorei com medo do futuro,
eu precisava cuidar da cria,
tinha aquele emprego que ia começar,
e o pai do menino que só fez me abandonar.
eu me tão senti sozinha.
numa solidão profunda.
foi aí que você sentou ao meu lado,
e o silêncio daquele abraço trouxe à memória a sua história,
a sua história que é a minha também.
deixar a terra natal, o medo do pão faltar na mesa, a água que foi cortada.
a patroa que só fazia te humilhar, o dinheiro que você se apertou tanto para guardar.
a venda que abriu na esquina e o orgulho da casa que construiu aos poucos.
tu criou os filhos, os sobrinhos, os netos.
eu lembro da tua comida ser repleta de amor.
e do seu sorriso danado a despejar carinho em quem tava por perto.
sua existência sempre foi abundante.
é por isso que mesmo na sua falta, não existe ausência.
porque seu legado de cuidado foi remédio para cura.
cura que fez a nossa família preta permanecer viva.
pois nas dores ancestrais que trouxemos conosco,
o afeto gerado por ti, nos ensinou que estarmos juntos
é a solução para lidarmos com todas elas.
no corpo marcado pela dor, seguimos compartilhando afetos.
e afeto de mulher preta para com os seus é pura potência.
é geração de vida e resistência.
afinal, mulher preta nunca existiu sozinha.
a gente tá sempre rodeada umas das outras.
e no hoje que é feito por todas nós.
saudemos as que vieram antes.
celebremos as que virão depois.
Poema: “Cuidado que é remédio pra cura”, de Rita Romão
Ilustração: Silvana Mendes
Esses versos são uma homenagem para Josefa Inês Regina da Silva e Maria Salomé da Silva Santos que foram por toda vida um elo de cuidado e de amor.
salve a força das minhas ancestrais,
que me permitem pisar nesse chão.
*
salve a força das pretas velhas
que no saber silencioso de quem sente,
me ensinaram os conhecimentos que não estão nos livros:
sobre como secar minhas lágrimas,
sobre como sarar minhas mágoas,
sobre como nadar em águas agitadas.
*
me cobriram de amor até as vísceras,
dando dobrado,
todo o amor que na vida já me foi negado.
*
amor que aliviou minha dor nas costas,
que deu ao meu semblante mais leveza
que me lembrou de olhar pra dentro,
pra encontrar riqueza,
que me ajudou a descobrir alegria,
numa vida de tristeza.
*
amor que me gestou,
amor que me guiou
amor que me sustentou
amor que me curou.
*
salve a força das caçadoras da verde mata,
que com um facão na mão,
deram os passos confiando que Deus colocaria o chão.
encheram suas mãos de calo,
abrindo caminho onde era só mato,
construíram com os próprios braços,
a estrada por onde hoje, trilho meus passos.
*
salve a força das caboclas guerreiras
que com fé e coragem,
garantiram a sobrevivência de toda a minha linhagem.
carregaram nas costas nossa vida
no cabo da enxada
na margem do rio
na beira do fogão
*
arando terra
lavando roupa
cuidando de menino.
plantando, regando, colhendo.
cozinhando, amamentando, nutrindo.
engolindo o choro
endurecendo o couro
seguindo em frente, ligeira
sem tempo pra sentir canseira
transformando ferida em cicatriz
no tempo em que dar conta
não era opção,
era obrigação.
*
salve a força das minhas ancestrais,
que me permitem resistir nesse chão.
*
Salve a força de Dona Santa,
que ainda no tempo da roça,
se fez mulher, menina.
órfã de mãe aos 8,
casada aos 15,
mãe de 12 aos 40.
Dona Santa que pariu 7 Marias
Maria de Fátima
Maria da Glória
Maria Vaniza
Maria Silvana
Maria Genete
Maria Cimara
Maria Cimone
*
Maria Cimone
que aos 14 era doméstica
aos 17 tava grávida
e aos 18 me paria.
*
Saiu da escola
trabalhou duro
e deu conta de tudo.
*
Maria Cimone,
que no segundo filho,
casou e jurou que a vida a partir dalí seria melhor.
coitada, melhorou foi nada.
*
Mesmo assim,
ergueu os braços
e cuidou dos filhos.
fechou sua boca
e aprendeu a ser submissa.
Se virou,
deu um jeito
se multiplicou
em 2, 3, 4, 5
1, 2, 3,
muitas vezes.
*
salve a força das minhas ancestrais,
que me permitem reinventar esse chão.
*
mulheres que de tanto terem que buscar solução,
nunca tiveram tempo pra depressão.
*
mulheres que nunca viveram,
e que mesmo assim
sempre sobreviveram
*
mulheres que mesmo sem salário,
sem escola
sem direitos
e sem voz,
construíram legados de abundância.
*
mulheres que me amparam com tanta força
que eu nunca fico sozinha.
*
mulheres que inspiram nosso desejo,
de enfrentar todos os nossos medos
de libertar nosso agora,
para contarmos nós mesmas,
nossas histórias.
Poema: “Salve a força das minhas ancestrais”, de Laura Samily
Ilustração: Silvana Mendes
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