Uma conversa sobre como o racismo ambiental tem gerado impacto na saúde de mulheres negras e indígenas em tempos de pandemia.
Historicamente, a divisão territorial no Brasil é um fator de potencialização de opressões. Durante o início da pandemia, muito se falou sobre racismo ambiental, já que um dos principais pontos acentuados pela crise sanitária, foi a precariedade dos serviços de saneamento em algumas regiões do país, como um fator de risco. Sem esse recurso básico, comunidades periféricas, indígenas e quilombolas desde o início da pandemia sempre estiveram mais expostas à contaminação. O presidente da república chegou a negar até mesmo acesso à água potável para a população indígena. Ficou nítido, mais uma vez, que até mesmo a higiene, tão falada e necessária para combater o vírus, é um privilégio de poucos no Brasil.
Estamos vivenciando a maior crise de saúde da história, passando por esse momento sem o menor amparo do governo. A ausência contínua de serviços básicos, políticas públicas e medidas preventivas que possam ajudar a combater a situação, é infelizmente o resultado de uma negligência arquitetada por um governo sem nenhuma intenção de proteger as pessoas em vulnerabilidade social do país. Do contrário, os esforços vão no sentido oposto.
Não se trata de falta de capacidade de gestão mas, sim, uma gestão muito bem articulada para o extermínio dos povos em vulnerabilidade. Aqui, vale destacar a pesquisa Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil - feita pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) e a Conectas Direitos Humanos e coordenada pela jurista Deisy Ventura, que apontou de forma muito didática em sua análise, que o que houve foi “uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República.”
Também torna-se explícito contra quais populações se concentram os ataques. Além dos povos indígenas, a quem Bolsonaro nega até mesmo água potável, há uma série de medidas tomadas para impedir que os trabalhadores possam se proteger da covid-19 e fazer isolamento. O governo amplia o conceito de atividades essenciais até mesmo para salões de beleza e busca anular o direito ao auxílio emergencial de 600 reais determinado pelo Congresso a várias categorias. Ao mesmo tempo, busca implantar um duplo tratamento aos profissionais de saúde: Bolsonaro veta integralmente o projeto que prevê compensação financeira para aqueles trabalhadores que ficarem incapacitados em consequência de sua atuação para conter a pandemia e tenta isentar os funcionários públicos de qualquer responsabilidade por atos e omissões no enfrentamento à covid-19. Em resumo: o trabalho duro e arriscado de prevenção e combate numa pandemia é desestimulado, a omissão é estimulada.
E enquanto o governo se omite, quem segura o tranco da saúde coletiva nas comunidades em vulnerabilidade são as mulheres. Nos serviços de cuidado, saúde, distribuição de alimentos, itens de higiene, entre outras frentes, elas se desdobram, seja individualmente, em coletivo, ou junto das organizações da sociedade civil, elas se apoiam umas nas outras para se manter vivas e apoiar suas comunidades.
Convidamos para este conteúdo algumas dessas mulheres para conversar com a gente, para nos ajudar a entender melhor, a partir de suas perspectivas, quais os principais desafios pela garantia do direito à vida de mulheres negras e indígenas durante a pandemia.
Conselheira Distrital de Saúde Indígena e Conselheira Municipal de Saúde do Município de Aragarças, Goiás, representando povos indígenas em questões relacionadas a doenças sexualmente transmissíveis. Também é uma das coordenadoras da ASIVA (Associação Indígena do Vale do Araguaia) e membra do Coletivo das mulheres Inã, onde vem trabalhando desde 2020 na distribuição de EPIs nas aldeias do município, durante a pandemia.
Eliana nos conta que, durante a pandemia, seu distrito encontrou muitas dificuldades e que o descaso com a saúde indígena ficou ainda pior. Segundo ela, o que deu suporte para toda a comunidade foi a mobilização coletiva das mulheres da região, que juntas, foram responsáveis pela garantia de EPIs para os profissionais indígenas de saúde na linha de frente de enfrentamento à COVID-19, além da difusão de informações preventivas e arrecadação de itens de higiene e alimentação para os moradores do território.
E o descaso com a pandemia ficou mais visível pra todos nós. Porque você não vê a atuação dos profissionais em si. Muitos profissionais jogaram para os indígenas mesmo e ficaram pra lá [no distrito]. Tem uma equipe de resposta rápida, mas ela tá dentro do distrito, sendo que ela foi contratada para ficar dentro da área [indígena].
Eliana Karajá, Aragarças, GO
Os mais velhos estão indo e é quando a gente perde as nossas bibliotecas, né? Elas partem e aí a gente fica ceifado daquele tudo alí. Então a comunidade mudou em tudo, porque quando você vive dentro de uma aldeia você tem outro tipo de vivência. É uma situação onde você tem a família toda reunida, os parentes chegam, vem pra alimentação, tá ali o tempo todo unido todo mundo, é um coletivo, tudo junto.
Eliana Karajá, Aragarças, GO
Para Eliana, a mudança mais significativa na forma como a comunidade dela tem vivido é não poder mais conviver em coletivo. Para ela, não poder mais receber os familiares de outras aldeias e ter que lidar com a morte massiva de seus idosos altera muito a forma de vida indígena.
Concentrada na Comunidade Jardim Colombo, do Complexo Paraisópolis em São Paulo, atuando principalmente lá e dando suporte a outras comunidades vizinhas, em questões de moradia em áreas marginalizadas e de riscos ambientais, por meio da revitalização desses espaços, além da inserção de arte e cultura e de ações com foco em empregabilidade para mulheres, principalmente na construção civil. Ela nos conta que, no início da pandemia, sua comunidade viveu uma situação desesperadora, por estarem desamparados no enfrentamento ao vírus.
Com relação à saúde, logo no comecinho foi muito assustador porque nós não estávamos recebendo informações concretas, não tinha ninguém ali da saúde pegando e falando pra nós 'olha vocês precisam fazer isso'. Nós não sabíamos o que era verdade, o que era fake news... No primeiro momento, tivemos que correr atrás das informações concretas, nós que tivemos que passar pra comunidade, seja colando flyers, falando de boca a boca, criando grupos de whatsapp, passando carro de som, comunicando pra comunidade o que realmente tava acontecendo, o que realmente precisávamos fazer. Porque, caso contrário, as pessoas iam permanecer perdidas.
Ester Carro, Jardim Colombo, Complexo Paraisópolis, SP
As mulheres da comunidade começaram a perceber que elas são agentes transformadores da própria realidade delas e que, apesar de toda a dificuldade que elas passaram e continuam passando, o apoio uma da outra é fundamental para elas continuarem seguindo, continuarem com resiliência e persistência.
Ester Carro, Jardim Colombo, Complexo Paraisópolis, SP
Na entrevista, ela destaca os problemas que os moradores do Jardim Colombo, na zona sul de São Paulo, enfrentam na luta pela garantia de moradia mais digna, o que interfere diretamente em sua saúde e qualidade de vida.
Para ela, uma das mudanças mais significativas deste contexto foi que as mulheres tiveram de aprender a trabalhar em rede, ser solidárias e dar as mãos umas para as outras, o que vem fazendo toda a diferença no enfrentamento ao vírus, já que no Jardim Colombo também são elas as principais responsáveis pela garantia do direito à vida de todos.
Maria, que tem 41 anos, é Secretária da Associação Quilombo Rampa, mãe solo, e moradora do Quilombo Rampa, localizado no Território Rampa no município de Vargem Grande, Maranhão.
Maria de Fátima nos conta que garantir a saúde das pessoas no território não tem sido fácil, mas que as mulheres seguem se mobilizando em ações coletivas, seja para arrecadação de dinheiro para compra de medicamentos ou financiamento de procedimentos, até para viabilizar deslocamentos para o hospital da cidade, entre outras ações. Um grupo que ela enxerga como um dos mais vulneráveis no contexto atual em seu território são as gestantes que, neste momento, enfrentam grandes dificuldades para fazer o deslocamento até o hospital da cidade durante o pré-natal.
Acho que deveria existir mais programas que orientassem melhor a mulher quanto à saúde, porque nós enquanto mulheres pretas e indígenas temos uma saúde diferenciada, então nós deveríamos ter também uma atenção diferenciada. É nosso direito isso, mas esses direitos são negados à gente, então a gente fica só, sem saber o que fazer. Então eu acho que pra resolver esse problema, as autoridades deveriam estender um pouco mais a mão pra gente nesse aspecto de saúde da mulher.
Maria de Fátima da Silva, Quilombo Rampa, Vargem Grande, MA
A gente teve que inventar algo pra fazer aqui mesmo na comunidade, pra complementar as rendas que foram perdidas, então nossa rotina mudou muito, significativamente. A gente vive aqui agora mais sujeita ao estresse, à ansiedade, enfim, a mudança foi geral. Mas como somos mulheres guerreiras né, a gente sempre se inventa e reinventa. Estamos na luta sempre.
Maria de Fátima da Silva, Quilombo Rampa, Vargem Grande, MA
A sociedade civil poderia ficar mais próxima dos territórios quilombolas, conversando mais com as lideranças para auxiliar um pouco melhor no que for preciso. Para pressionar o governo poderíamos nos unir mais, nos fortalecendo, pressionando pra ver se o governo toma uma atitude, porque o povo tá aí, tá morrendo e eles não estão fazendo nada. O governo não tá nem aí pra gente.
Maria de Fátima da Silva, Quilombo Rampa, Vargem Grande, MA
Um ponto que Maria de Fátima também destaca é o quanto a saúde mental das mulheres está mais ameaçada, por conta das preocupações geradas com a necessidade de criar novas fontes de renda.
A ausência de fontes de renda também compromete ainda mais a alimentação das pessoas, já que os itens seguem cada vez mais caros. No quilombo, que é localizado na região de Vargem Grande, não existe colheita o ano todo e nos momentos em que não podem colher esses itens da própria roça, as principais refeições seguem reduzidas. Com a alimentação comprometida, a imunidade das pessoas fica mais baixa e elas, mais expostas às doenças.
Ficha-técnica:
Realização: Think Olga
Pesquisa e edição: Laura Samily
Vinhetas: Da Gorilla Studios
Entrevistadas: Maria de Fátima da Silva, Eliana Karajá e Ester Carro
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